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quarta-feira, 29 de julho de 2015

O Enterrado Vivo, de Carlos Drummond de Andrade


É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.


Carlos Drummond de Andrade, o melhor poeta mineiro, do mundo. Em suas palavras, o poeta transfigura-se em algo que possa ser eterno, em poesia. Por mais que tente enterrá-lo, sua poesia perdura pra sempre. Somos de fato um mundo? Um mundo que respira, que sofre, que goza, que chora, que ama, que vive? Não acredito que somos egocêntricos, mas temos todas as vivências do mundo dentro de nós mesmos. Resta saber se queremos viver eternamente.

fonte:https://cronicassimples.wordpress.com/tag/o-enterrado-vivo/ 

domingo, 3 de maio de 2015

Recado ao Sr. 903 - Rubem Braga


Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador do prédio, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão . O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números , dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos ; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré , dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar , depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada,   e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos . Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.
"' Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

domingo, 6 de julho de 2014

Pedindo pizza em 2020 - Luis Fernando Verissímo


* Telefonista: Pizza Hot, boa noite!
* Cliente: Boa noite! Quero encomendar pizzas…
* Telefonista: Pode me dar o seu NIDN?
* Cliente: Sim, o meu número de identificação nacional é 6102-1993-8456-54632107.
* Telefonista: Obrigada, Sr.Lacerda. Seu endereço é Avenida Paes de Barros, 1988 ap. 52 B, e o número de seu telefone é 5494-2366, certo? O telefone do seu escritório da Lincoln Seguros é o 5745-2302 e o seu celular é 9266-2566.
* Cliente: Como você conseguiu essas informações todas?
* Telefonista: Nós estamos ligados em rede ao Grande Sistema Central.
* Cliente: Ah, sim, é verdade! Eu queria encomendar duas pizzas, uma de quatro queijos e outra de calabresa…
* Telefonista: Talvez não seja uma boa idéia…
* Cliente: O quê?
* Telefonista: Consta na sua ficha médica que o Senhor sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alta. Além disso, o seu seguro de vida proíbe categoricamente escolhas perigosas para a sua saúde.
* Cliente: É você tem razão! O que você sugere?
* Telefonista: Por que o Senhor não experimenta a nossa pizza Superlight, com tofu e rabanetes? O Senhor vai adorar!
* Cliente: Como é que você sabe que vou adorar?
* Telefonista: O Senhor consultou o site ‘Recettes Gourmandes au Soja’ da Biblioteca Municipal,dia 15 de janeiro, às 4h27minh, onde permaneceu conectado à rede durante 39 minutos.
Daí a minha sugestão….
* Cliente: OK está bem! Mande-me duas pizzas tamanho família!
* Telefonista: É a escolha certa para o Senhor, sua esposa e seus 4 filhos, pode ter certeza.
* Cliente: Quanto é?
* Telefonista: São R$ 49,99.
* Cliente: Você quer o número do meu cartão de crédito?
* Telefonista: Lamento, mas o Senhor vai ter que pagar em dinheiro. O limite do seu cartão de crédito já foi ultrapassado.
* Cliente: Tudo bem, eu posso ir ao Multibanco sacar dinheiro antes que chegue a pizza.
* Telefonista: Duvido que consiga! O Senhor está com o saldo negativo no banco.
* Cliente: Meta-se com a sua vida! Mande-me as pizzas que eu arranjo o dinheiro. Quando é que entregam?
* Telefonista: Estamos um pouco atrasados, serão entregues em 45 minutos. Se o Senhor estiver com muita pressa pode vir buscá-las, se bem que transportar duas pizzas na moto não é aconselhável, além de ser perigoso…
* Cliente: Mas que história é essa, como é que você sabe que eu vou de moto?
* Telefonista: Peço desculpas, mas reparei aqui que o Sr. não pagou as últimas prestações
do
 carro e ele foi penhorado. Mas a sua moto está paga, e então pensei que fosse utilizá-la.
* Cliente: @#%/§@&?#>§/%#!!!!!!!!!!!!!
* Telefonista: Gostaria de pedir ao Senhor para não me insultar… Não se esqueça de que o Senhor já foi condenado em julho de 2006 por desacato em público a um Agente Regional.
* Cliente: (Silêncio)
* Telefonista: Mais alguma coisa?
* Cliente: Não, é só isso… Não, espere… Não se esqueça dos 2 litros de Coca-Cola que constam na promoção.
* Telefonista: Senhor, o regulamento da nossa promoção, conforme citado no artigo 3095423/12, nos proíbe de venderbebidas com açúcar a pessoas diabéticas…..
* Cliente: Aaaaaaaahhhhhhhh!!!!!!!!!!!
Vou me atirar pela janela!!!!!
* Telefonista: E machucar o joelho? O Senhor mora no andar térreo!
(Luiz Fernando Veríssimo)


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Chatear e encher-crônica de Paulo Mendes Campos









Um amigo meu me ensina a diferença entre chatear e encher. Chatear é assim: você telefona para um escritório qualquer da cidade. 
- Alô! Quer chamar por favor o Valdemar?

- Aqui não tem nenhum Valdemar.

Daí alguns minutos você liga de novo:

- O Valdemar, por obséquio.

- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.

- Mas não é o número tal?

- É, mas aqui nunca teve nenhum Valdemar.

Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:

- Por favor, o Valdemar já chegou?

- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo do Valdemar nunca trabalhou aqui?

- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.

- Não chateia.

Daí a dez minutos, liga de novo.

- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?

O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.

Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:

- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim?
(Para gostar de ler. Vol. 5. São Paulo: Ática, 1990.)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

E depois? – Crônica de Rubens da Cunha



“MENINO: Eu falo desses homens, esses aí que estão amarrados nos postes”
Hilda Hilst, na peça O Novo Sistema

Agora estão espancando e amarrando bandidos em postes. E depois, quem será espancado e amarrado diariamente nos postes? Depois serão os drogados, os craqueiros da praça central. Depois serão os drogados e craqueiros das periferias. Depois serão os bêbados que tropeçam no meio-fio. Depois serão os menores abandonados que atazanam a paz e são protegidos pela lei. Depois serão os mendigos, os pedintes que ficam com suas feridas expostas nas calçadas. Depois serão as velhinhas que pedem pelo amor de deus na porta dos bancos e as índias que ficam em silêncio atrapalhando o fluxo nas calçadas. Depois serão os flanelinhas, os vendedores ambulantes que oferecem produtos piratas. Depois serão todos os camelôs. Depois serão os artesãos rastafáris que não tomam banho, talvez estes venham primeiro que os flanelinhas. Depois serão as prostitutas e os travestis que perambulam nas madrugadas. Depois serão os que contratam as prostitutas e os travestis. Depois serão os homossexuais. Depois serão as mulheres que andam com roupas curtas e decotadas. Estas, além de serem agredidas, serão estupradas também porque estavam pedindo, afinal estavam vestidas desse jeito. Depois serão os loucos que falam sozinhos. Depois serão os tatuados. Depois serão os homens cabeludos e as mulheres de cabelos curtos. Aquelas mulheres que cortam o cabelo muito baixo de um lado só serão espancadas e amarradas primeiro. Depois serão os velhos que também tem preferências e direitos demais. Depois será quem fizer qualquer questionamento a respeito da ordem vigente. Depois serão os artistas de rua. Depois serão os artistas. Depois será quem anda a pé ou de bicicleta e exige faixa exclusiva. Depois serão os negros que até aqui conseguiram escapar. Depois serão os gordos pois eles não tem saúde e são feios. Depois serão os feios. Depois serão todos os pobres ou aqueles que aparentarem ser pobres. Depois serão aqueles que ouvem música que não presta e assistem programas populares na televisão. Depois será todo aquele que for inconveniente. Depois será você e serei eu. Depois será tarde…

Rubens da Cunha
TEXTO SUGERIDO POR ELIANE ( minha amiga lilika)
E depois? – Crônica de Rubens da Cunha
Por Revista Osíris (Marco Vasques / Rubens da Cunha)
Crônica publicada no Jornal A Notícia em 19/02/2014
http://revistaosirisliteratura.wordpress.com/2014/02/19/e-depois-cronica-de-rubens-da-cunha/

domingo, 9 de fevereiro de 2014

A última crônica -Fernando Sabino



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu “quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.”



"Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino". A frase poética escolhida pelo autor de "O Encontro Marcado" para a sua lápide expõe de maneira sucinta, mas explícita, um pouco da personalidade, dos desejos e anseios de um protagonista da palavra. Um autor cuja pena produziu, desde a mais tenra juventude, textos fundamentados na sensibilidade capaz de captar a angústia humana como poucos de sua geração souberam fazer. Sobre ele, um dos maiores críticos literários brasileiros, Antonio Cândido, avalia: "Fernando tinha um olhar infalível para os pormenores expressivos e uma capacidade prodigiosa de invenção verbal".
Publicado no jornal Diário de S. Paulo-Gabriel Chalita

terça-feira, 30 de julho de 2013

O AFOGADO- Fernando Sabino



O AFOGADO- Fernando Sabino

- Vocês não souberam o que aconteceu com o carro dele?
Como nenhum de nós soubesse, pôs-se a contar-nos, excitado:
- Imaginem que tinha um sujeito se afogando na Praia de Botafogo e vários carros já haviam parado para ver. Ele parou atrás, junto à calçada. Então veio outro carro em disparada e bateu de cheio no dele.
- Estragou muito? – perguntou alguém da roda.
- Espere, não foi tudo: o dele, por sua vez, bateu no da frente. O da frente atropelou duas moças que iam passando. Elas ficaram feridas levemente, mas os carros ficaram completamente amassados. O dele, então, virou sanfona.
- Mas que azar! – comentou um, consternado.

- Logo aquele carro, novinho em folha! – disse outro.
- Pois foi isso: ficou em pandarecos.
- Então vai custar um dinheirão para consertar.
- Não tinha seguro? – tornou o primeiro.
- Ele não, mas o que bateu tem seguro contra terceiros: só que um seguro de cem mil não dá para cobrir o estrago de jeito nenhum.
- Além do mais, é um inferno tentar receber seguro nessas situações.
- Foi o que ele me disse. E tem os outros dois carros, que naturalmente vão pleitear parte desse seguro também.
- Mas se a culpa foi do outro, tem que pagar tudo.
- Até provar que a culpa foi do outro...
- Não houve perícia?
- Não, parece que não houve perícia.
A conversa prosseguiu entre comentários em que todos lastimavam a falta de sorte do amigo. Todos, menos eu, que me limitava a ouvir, pensativo.
- Você não disse nada – observou um deles.
É verdade, eu não disse nada, continuei calado. Não havia muito que dizer, além do que já fora dito pelos outros. Mas na realidade gostaria de saber o que foi que aconteceu com o homem que estava se afogando.

sábado, 22 de junho de 2013

Consumistas por Ivan Angelo

De quantas calças jeans você precisa?

Eu tenho três: uma índigo tradicional, que tem uns seis anos; uma bem mais antiga, de um azul desbotado pelo tempo, aguado, já puída, que faz o papel de vigilante do peso, pois é do tempo em que minha cintura se comportava melhor; e uma branca, a mais nova, de uns cinco anos, que entrou no lugar de outra igualzinha que se rasgou no joelho. São suficientes para as situações e combinações, mas surpreendo-me com uma mulher, na página de moda de um grande jornal, contando vantagem: diz que tem trinta e tantas calças jeans, e sempre acha que precisa de mais uma, quando a vê na loja. Algum detalhe torna a nova calça "necessária"; ela "precisa" daquele jeans.

Você realmente precisa de doze pares de óculos escuros? Já não é adequado dizer "óculos de sol", porque é moda usá-los dentro de shoppings e até em discotecas, na maior escuridão. Eles se tornaram algo mais do que óculos: são máscaras, aquela coisa que o Spirit dos quadrinhos botava nos olhos ou que o Fantasma botava para virar outra pessoa. Eles fazem a mágica da troca de personalidade.

De quantos celulares você precisa? Apareceu no jornal uma mulher que tem dúzias. Para quê, não fiquei sabendo, bastou-me olhar a foto da tonta com aquele mostruário de celulares, aquele despropósito. O apelo do modelo novo é irresistível para esse tipo de gente, que não suporta a ideia de estar "desatualizada" e só se considera "in", incluída, quando possui aquela coisa que acaba de ser lançada.

De quantas camisetas você precisa? Bom, o número de camisetas que as pessoas têm é incontrolável. Nem sempre é a gente que compra. Elas viraram "o" presente. São fáceis de achar, têm uso, têm graça. A gente nem compra camisetas, ganha.

E tênis, de quantos você precisa? Tenho uma amiga, nem é tão jovem, que tem dezoito pares. Minha filha chegou a ter uns doze. E ela tem uma amiga que possui 27. Não consigo entender o porquê ou o para quê. Só quem tem é que sabe as razões.

Brincos. É comum as mulheres terem trinta, quarenta, sessenta pares de brincos. Vão comprando e acumulando ao longo da vida, vão ganhando. Não conseguem passar por uma bijuteria ou joalheria sem provar diante do espelho um pequeno penduricalho nas orelhas. E compram, não resistem a três provadas.

Carros! Você precisa de mais do que um carro? Há pessoas que têm três, quatro. Como se houvesse grande diferença entre usar um e outro como condução. Para viajar, sim, o tipo faz diferença, e nesse caso poderiam comprar um para as duas funções. Preferem ostentar.

Imelda Marcos gostava de sapatos, tinha 3 000, comprados com o suor do povo filipino. Já vi foto de uma perua brasileira exibindo sua coleção de mais de duas centenas de calçados. E trinta bolsas de grife. De quantas bolsas você precisa?

É comum o consumista não conseguir escolher entre uma coisa e outra – porque escolher uma seria perder a outra – e para pôr fim à angústia leva as duas. Na infância dos consumistas faltaram ou falharam a orientação na compra e o apoio à decisão tomada. Frustrações da infância pedem compensações quando o dinheiro permite. Mas há consumistas pobres, que compram quinquilharias baratas e desnecessárias na Rua 25 de Março, enquanto as poderosas compram supérfluos caríssimos na Daslu.

Coleções não são a mesma coisa. Você coleciona bolinhas de gude, palitos de picolé, caixas de fósforos, lápis, figurinhas, rodelas de chope, rolhas, enfim, coisas que não valem nada, e coleciona coisas que chegam a valer muito, como selos. Não têm utilização prática. É diferente do consumo, de acumular bens de uso porque não consegue se controlar.

É diferente também de juntar raridades. Um apresentador de televisão tinha dezenas de relógios de pulso raros, antigos. É diferente, dizia, de ter um monte de relógios mais caros do que raros, de fabricação e uso atuais. De quantos relógios você precisa?

sexta-feira, 10 de maio de 2013

CRÔNICA DO DIA DAS MÃES!

      Uma mulher foi renovar a sua carteira de motorista.
Pediram-lhe para informar qual era a sua profissão.
Ela hesitou, sem saber bem como se classificar.
"O que eu pergunto é se tem um trabalho", insistiu o funcionário.
"Claro que tenho um trabalho", exclamou.
"Sou mãe".
"Nós não consideramos "mãe" um trabalho.
Vou colocar"Dona de casa", disse o funcionário friamente.
Não voltei a lembrar-me desta história até o dia em que me encontrei em situação idêntica.
A pessoa que me atendeu era obviamente uma funcionária de carreira, segura, eficiente, dona da situação, perguntou:
-Qual é a sua ocupação?
Não sei o que me fez dizer isto,as palavras simplesmente saltaram-me da boca para fora

-"Sou Doutora em Desenvolvimento Infantil e em Relações Humanas."

A funcionária fez uma pausa, a caneta de tinta permanente a apontar para o ar e olhou-me como quem diz que não ouviu bem. Eu repeti pausadamente, enfatizando as palavras mais significativas.Então reparei, maravilhada, como ela ia escrevendo, com tinta preta, no questionário oficial.

Posso perguntar, disse-me ela com novo interesse,o que faz exatamente?

Calmamente, sem qualquer traço de agitação na voz,ouvi-me responder:

-"Desenvolvo um programa a longo prazo , em
laboratório e no campo experimental . Sou responsável por uma equipe, e já recebi
quatro projetos .

Trabalho em regime de dedicação exclusiva (alguma mulher discorda???),o grau de exigência é em nível de 14 horas por dia (para não dizer 24 horas).

Houve um crescente tom de respeito na voz da funcionária que acabou de preencher o formulário, se levantou e, pessoalmente me abriu a porta. Quando cheguei em casa, com o título da minha carteira erguido, fui recebida pela minha equipe: uma com 13 anos, outra com 7 e outra com 3 anos. Do andar de cima, pude ouvir o meu novo experimento (um bebê de seis
meses), testando uma nova tonalidade de voz.Senti-me triunfante!

Maternidade... que carreira gloriosa! Assim, as avós deviam ser chamadas
"Doutora-Sênior em Desenvolvimento Infantil e em Relações Humanas".
As bisavós:
"Doutora- Executiva- Sênior".
E as tias:
"Doutora - Assistente".


Uma homenagem carinhosa a todas as mulheres, mães, esposas, amigas, companheiras.

Doutoras na Arte de fazer a vida melhor !!!

sábado, 4 de maio de 2013

MODA???!!!!!


A moda é um conceito estranhíssimo!!
Alguém decide que agora se deve usar a roupa X ou Y, a cor W ou Z e todos passam a vestir-se de igual ou, numa versão menos radical, passam todos a vestir-se dentro de uma mesma corrente.
Onde estará a origem deste estranho comportamento?
Será que isto decorre do tribalismo inicial quando o homem sentia necessidade de pertencer e de se identificar com o grupo ou clã, para se sentir protegido e poder sobreviver? Nessa altura compreendia-se que para evidenciar uma maior coesão, se vestissem todos de igual e se pintassem da mesma cor!
Mas nos dias de hoje? A necessidade de sobrevivência e de proteção do clã já não corre esse tipo de riscos e, portanto não deve ser por isso.
Será que uma falta de gosto generalizada, resultante de deficiente sensibilidade e educação estética, leva uma certa maioria a adotar os padrões de uma minoria pseudo-iluminada? Também não me convence esta!
Será então unicamente uma vontade de variar? O resultado de nos cansarmos frequentemente da nossa aparência e procurarmos estereótipos que nos alimentem ilusões de mudança e renovação?
Se assim fosse a moda não se repetiria ciclicamente como acontece e além disso, também não seria aceita a padronização generalizada que anula a individualidade....
...Tenho uma grande curiosidade em saber quem, na realidade, define a moda. Que personagem fantástica é capaz de decidir uma tendência e pôr o mundo inteiro a vestir-se de acordo com as regras por si determinadas. Vejo essa personagem ditatorial como uma nova versão de Hitler, mas neste caso, um Hitler orientado para futilidades e não para a política e para a guerra (pensando melhor, não existem maiores futilidades que a guerra e a política).
Se analisarmos bem esta questão este personagem é potencialmente bastante mais perigoso que o patológico fascista, uma vez que este convenceu apenas um país e um povo, enquanto que o nosso “guru da moda” consegue convencer e levar o mundo inteiro atrás, independentemente de raça ou de credo, conseguindo até que pessoas com alguma inteligência e bom senso se vistam de forma completamente ridícula.

sábado, 27 de abril de 2013

Tecnologia e obsolescência planejada

Caí do mundo e não sei como voltar-Original de Marciano Durán, atribuído a Eduardo Galeano

O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco…
Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos, pendurávamos na corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujadas.
E eles, nossos nenês, apenas cresceram e tiveram seus próprios filhos se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis!
Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nem os defeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.
Nããão! Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum momento, me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.
O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que acontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.
Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para usar uma só vez.
Os talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta dos talheres! É que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida!
É mais! Se compravam para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.
E acontece que em nosso, nem tão longo matrimônio, tivemos mais cozinhas do que as que existiam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes.
Nos estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca, se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar.
Nada se arruma. O obsoleto é de fábrica.
Aonde estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém viu algum colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas? o afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para os talabarteiros?
Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e mais e mais lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade.
Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno, pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de … anos! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só a víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando, as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava..
Desse tempo venho eu.  E não que tenha sido melhor…. É que não é fácil para uma pobre pessoa, que educaram com “guarde e guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa”, mudar para o “compre e jogue fora que já vem um novo modelo”.
Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário, és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado… E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas… por amor de Deus!
Minha cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.
E a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma mulher e o mesmo nome (e vá que era um nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir.
Acreditávamos em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca nos explicaram que coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô.
Como querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular a poucos meses de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas?
Em casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era para as toalhas de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta para tudo o que não fosse toalha ou talheres. E guardávamos…
Como guardávamos!! Tuuuudo!!! Guardávamos as tampinhas dos refrescos!! Como, para quê?  Fazíamos limpadores de calçadas, para colocar diante da porta para tirar o barro. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola.
Tuuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar acendedores descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as giletes, até partidas ao meio, se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave.
E as pilhas! As pilhas das primeiras Spica passavam do congelador ao telhado da casa. Por que não sabíamos bem se se devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo vivesse menos que um jasmim. As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.
 Os jornais!!! Serviam para tudo: para servir de forro para as botas de borracha, para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisa para enrolar.
Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de carne!!! E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Volcán era a marca de um fogão que funcionava com gás de querosene) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um valete de espada que dizia “este é um 4 de paus”.
As gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o ganchinho de metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.
Eu sei o que nos acontecia: nos custava muito declarar a morte de nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem matá-los tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!!
E quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em base, e nos disseram: Comam o sorvete e depois joguem o copinho fora, nós dizíamos que sim, mas, imagina que a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa.
E me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!!
Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis; também o matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.
Me mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.
Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eterno tornaram caduco e ao caduco fizeram eterno.
Não vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour.
Esta só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do contrário, se misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à bruxa, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a bruxa me ganhe a mão e seja eu o entregue…

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Mal entendido (Orígenes Lessa)

Os dois garotos brincam na praia.Um, branquinho, queimado de sol., os olhos claros, quase negro de tanto tomar sol toda manhã. O outro, negrinho, de família no morro. Os dois descem à praia diariamente. O primeiro, do nono andar de um apartamento de frente, tapetes no chão, lustres de cristal. O outro, de um morro qualquer, barraco de madeira. Os “amigos” se encontram a hora certa, camaradagem de pé na areia igualitária. O primeiro traz uma bela bola. O segundo não tem bola, mas traz jogo. O primeiro é bem nutrido, atestado vivo de que vitamina batida no liquidificador é mesmo bom. O segundo é fino e sujo, os dentes inexplicavelmente claros e fortes... Paulinho chama-se o primeiro, porque o avô foi Paulo e com ele começou a fortuna da família. O outro chama-se Jorge.

Descem os dois todo dia. Quando Paulinho vem acompanhado pelos pais, Jorginho assiste, apenas com o olhar, ao jogo em que a censura familiar não deixa preto se meter. Quando Paulinho vem só com a empregada – e é quase sempre – nem é preciso pedir licença. Jorginho tem lugar seguro, que ele é o artilheiro-mor da vizinhança. E a pelada se prolonga. Por ele, a manhã toda, a tarde toda, a vida toda. Não tem escola, não tem compromisso. Amendoim torrado ele vende à noite. Ao fim de meia hora, a pelada vai-se desfazendo. Parentes e empregados vêm recolher os futuros Garrinchas, os Pelés e Zagalos em formação. Paulinho fica mais tempo. E, quando está só, ele e Jorginho descansam na areia. Inseparáveis na pelada – Paulinho arma o jogo, Jorginho apanha a bola e arremata de maneira inapelável – uma funda rivalidade os separa em tudo mais. Nunca se entendem. Porque Paulinho é importante, e Jorginho é um coitado. Paulinho vai à escola à tarde, de carro. Jorginho vende amendoim à noite. Oito anos, Paulinho. Nove anos, Jorginho. Reconhecendo a superioridade incrível do negro, no bate-bola, reclamando a sua colaboração, garantidora de tentos, Paulinho se vinga depois. E com sua falta de diplomacia, tão própria da idade, faz valer os seus títulos, para humilhar o companheiro.
─ Tua casa tem tapete no chão? A minha tem até no quarto da empregada. Tem lustre de cristal? Jorginho pergunta o que é. Paulinho explica. Jorginho não tem. Nem luz tem.
─ Teu pai tem sítio em Petrópolis?
─ Não – responde sério Jorginho.
─ O meu tem... Teu pai tem usina em Campos? O meu tem. E o teu pai tem iate?
─ Não.
─ O meu tem. E quantos apartamentos o teu pai tem? O meu tem dez. Só em Copacabana. O resto é na Tijuca.
 ─ Tem nenhum – responde Jorginho que baixa os olhos, acaricia o monte de areia que está juntando. ... Paulinho apanha a bola molhada, procura limpá-la dos grãozinhos de areia, pergunta de novo: ─ Teu pai é deputado?
Jorginho nem sabe o que seja aquilo, mas já diz que não, pelas dúvidas. Deve ser coisa importante. ─ Teu pai tem automóvel? Jorginho sorri tristemente, negando.
─ O meu tem – diz novamente em triunfo de garoto bem-nascido. O meu tem , um que ele vai para a cidade, um da mamãe, uma caminhonete pra ir para o sítio e um pra ir pra Petrópolis. Jorginho está completamente esmagado. Paulinho sorri, orgulhoso. E agora nem pergunta mais, só informa: ─ O meu tem 40 ternos de roupa, o teu não tem. O meu tem três casas de campo, o teu não tem. O pai tem dez cavalos de corrida, aposto que o teu não tem. Meu pai é amigo do Governador, o teu não é, pronto! Jorginho sente-se o menor dos moleques do mundo, o menor de todos os mortais.
Mas Paulinho ainda não está satisfeito.
─ O meu pai tem foto no jornal, o teu pai não tem. É quando Jorginho pula vitorioso. Dessa vez tem resposta. Retira do bolsinho do calção rasgado um pedaço amarfanhado de jornal. Exibe-o, peito cheio, orgulho no olhar.
─ Isso não. O meu também tem.
E em tom de desafio, irretorquível:
─ Você pensa que só teu pai que é ladrão?

 

sábado, 12 de janeiro de 2013

A MARGARIDA ENLATADA- Caio Fernando Abreu


Foi de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do paletó.

Diga-se em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida. Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou. Deu um grito:
—É isso!       
Chamou imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.

II

No dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:
Ponha uma margarida na sua fossa.
Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:
O índice de poluição dos rios é alarmante.

Não entre nessa.
Ponha uma margarida na sua fossa.
Ou
O asfalto ameaça o homem e as flores.

Cuidado.
Use uma margarida na sua fossa.

Ou
A alegria não é difícil.

Fique atento no seu canto.
Basta uma margarida na sua fossa.
Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As chamadas continuavam.

O índice de suicídios no país aumentou em 50%.
Mantenha distância.

Há uma margarida na porta principal.

Contratos. Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão.

As prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:
margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno. Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.
Em seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:
Margarida já era, amizade.

Saca esta transa:
O barato é avenca.

III
Não demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e incinerou-o.
Só depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.
Ele perguntou:
– Procura margaridas?
Ela respondeu:
– Já era.
Ele perguntou:
– Avencas?
Ela respondeu:
– Falou.